domingo, 4 de abril de 2010

Conto I



 Semana Santa
Ela era apenas um objeto social da cultura. Era mulher, estatura baixa, corpo bem feito, rosto também. A expressão dos  olhos de um castanho imenso que aturdia o cunhado que logo lhe perguntava se era santa ou safada.
Obstinada, ela respondia, que é isso João Batista, e você nem me conhece, com aquele sorriso que a Deus dera em comunhão e ao crisma na mais tenra idade.
Mas João, ordinariamente, insistia em suas mazelas que a irritava. Mudava o caso, discutia política do país, o problema da fome e das águas.  Até mesmo a chuva daquele dia não a deixara em paz. Olhava o céu e gritava um lá-vem-chuva tão entusiasmada que Vanessa pedia um ovo branco para Santa Clara. O batuque ao fundo da casa  anunciava os festejos da Páscoa. Por aqui tem reza, muita vela e procissão, para os mais incautos, samba, molejo, dança de matuto e feira de badulaques, artesanato e muita cerveja e cachaça que é para assustar os vizinhos cruzando um Credo da cabeça ao peito.
A chuva caia silente, o céu escurecido não tirava a animação da casa e dos festejos até que receberam uma visita já encomendada pelo internet um dia antes. Chegara o outro João, que não era o Batista, apenas João. Seus olhos cruzaram em alegria que a mulher inerte e diminuída percebera no minuto o que tudo acontecia. Mas isso era amor velho, de infância, adolescência recolhida pela torturas sociais da época.
Ele vivera um amor calado, mudo, por muitos anos. Até que lhe dissera um dia através dos modernismos que avô chamava de coisa do diabo. Joaquim  Fernandes sempre disse que o rádio ia  acabar com o mundo, que era a desgraça do povo, que até guerra trazia de longe!
Mas se não fosse assim, esse amor teria ficado guardado na lembrança, no desencontro, nos anos idos.
A mulher, condescendente, andava pela casa olhando as antiguidades, admirada de ver tanta beleza conservada através do carinho dos moradores. Pegava os santos, os oratórios, os candelabros, cheirava as barras de sabão que a  prima de Lorena mistura em alquimia as flores e os aromas resinados que colhia nas manhãs de orvalho, antes do sol aparecer no alto da montanha que ficava ao fundo do casarão.
Os olhos perdidos entre tanta maravilha nas cores dos vitrais da casa chagava o coração da esposa dentro de um emaranhado de galhos secos de um velho Manacá florido.
A conversa do apenas João e Lorena ia longe, olhares complacentes, lascivos, marcavam um novo encontro para um junho próximo. Fumavam para disfarce, retiraram-se da casa.
Passados os dias da Semana Santa, chegado o domingo, todos partiram. Ela ficara ali com suas coisas, seu teclado, os dedos rápidos preparavam textos para as próximas aulas da semana. A última porta de carro bateu, um até mais, o último!
A tristeza buscou fundo o seu coração. E sozinha as primeiras lágrimas desceram. Procurou pelos amigos de plástico como ela sempre chamara suas amizades da internet. Nada! Nenhum, somente o Fábio andava perdido pela comunidade.
Sentou sozinha sobre a cama, chegou os joelhos até o peito, abaixou a cabeça e chorou o choro mais duro que já tivera. As lágrimas desciam secas pela garganta rasgando, queimando tudo por dentro. A sua vontade era ficar ali, parada, exatamente como um feto e quando suas lágrimas bastassem. Levantou, num gesto súbito, vestiu suas roupas de academia e saiu pela avenida, chorando rasgado suas lágrimas de solidão e dúvida.
Nem o filho viera desta vez, nem os outros sobrinhos que tanto ama, a outra rmã. Andava apressado para chegar na esquina do Bairro de que mais gostava na cidade. Era lá que esgotava suas dores em lágrimas e dizia que voltava renovada de suas tristezas mais profundas. Relutou tanto pelo caminho até chegar ao lugar para desaguar as últimas águas do verão que já havia ido há uma semana. Segurou tanto as lágrimas que ao chegar naquela esquina, riu tanto, tanto como se desdenhasse o companheiro na tentativa de um gozo que não acontecera. Olhou o céu mais uma vez, o sol acabava de declinar. Deu a volta pelo bairro e na volta,como sempre acontecia, já não tinha tanta vontade de chorar. Estava leve e solta. Pensou   nos olhos de João, na blusa Polo verde do último encontro, no sempre a mesma cor e nos mesmos gestos tímidos do adolescente que ainda guarda dos anos que se foram.
Pensou no filho longe, na semana que viria cheia, veio andando pela avenida , fazendo o caminho de volta. Olhou algumas vitrines,mostrando seu lado mais fútil.
 - Amanhã passo aqui para comprar esta sandália linda, disse calada, enxugando sua última lágrima.
4 de Abril de 2010.
(Mais um que vai lá pra Fortaleza!!!)

O Primeiro Beijo




             Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
            - Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada. Fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar?
Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? Perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos nomeio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os  de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo com sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! Como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engoli-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento do deserto? Tentou por instantes, mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, talvez horas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que, mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos, estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada.
O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga.
Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era  a estátua de uma mulher e era da boca de mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de ume boca par a outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o liquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva.
Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até, que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem.



Clarice Lispector, Felicidade Clandestina.