sábado, 6 de setembro de 2008

Será que escrevo um livro?!

Vista da torre da Matriz de Carmo da Mata, onde morava minha grande avó Iracema
Romance partido ao meio


A chuva bate silenciosa e funda nas folhas verdes recuperadas da vontade das árvores. Faz 4 meses que não chove! O céu parece uma tênue e fina gaze sobre nós! Acho que ela vai logo! Grita Maria Célia numa investida no parapeito da janela quase esquecida.
A rua da cidade é sempre assim, passa carro de vez em quando... E, de vez em quando, chega gente nova na cidade. Cidade esquecida no tempo, de portas patinadas de azul colonial das outras épocas.


Tudo na cidade é outro!

Outro tempo, se dizia que aqui passou carreteiros com grandes maletas de couro carregados nos lombos dos burros, cheiiinho de ouro.
Ouro massacrado, carregado também no lombo dos escravos.
O velho gramofone da minha avó ainda toca na sala, machuca um blues enquanto a chuva desce cuidadosa por essas bandas. Escorre devagarinho, contornando uma touceirinha que o gadinho de carneiros não conseguiu descobrir. Cachorro bravo à espreita. Max! Mas! Deeiixa as novilhas em paz! O grito de Célia, ecooa, atazana o ouvido. Ô mulher pra falar alto! A avó Iracema deixa o bordado e sai pra cozinha, atrantada com os gritos dessa menina, sem os famosos lábios de mel ,que ouvira, nas noites, do avó na leitura de um livro de José de Alencar.


No quarto, o antigo vestido de noiva, guardado nos sonhos das novas gerações. A festa das outras meninas era brincar de noiva com o vestido guardado da tia Lurdinha. Tudo tinha que ser bem escondidinho. O nome de Lurdinha era segredo, letras fortuitas nas bocas da família.

(...)
Tudo era em vão. Nas ruas, nas chuvas, dentro das casas.
Tudo vão!
(Praça da Matriz - Tapiratiba)
ALMA ENCANTADORA DAS RUAS

João do Rio


This is a sensible book. This is a book to improve your mind. I do not tell you all I know, because
I do not want to swamp you with knowledge...
(Este é um livro sensível. Este é um livro para melhorar nossa mente. Eu não vou contar a todos vocês o que eu sei, porque eu não desejo atolá-los com meu conhecimento...)

Jerome K. Jerome
A
João Ribeiro
Profunda admiração
JOÃO DO RIO


A RUA

Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se
não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é
partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades,
nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia,
mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia — o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.

A rua! Que é a rua? Um cançonetista de Montmartre fá-la dizer:

Je suís la rue, femme êternellement verte,
(Eu sou a rua, fêmea eternamente verde)
Je n’ai jamais trouvé d’autre carrière ouverte
(Eu jamais encontrei outra carreira aberta)
Sinon d’être la rue, et, de tout temps, depuis
(Senão de outra rua, e, todo o tempo, depois)
Que ce pénible monde est monde, je la suis...
(Que esse penoso mundo é mundo, eu sou-o...)

A verdade e o trocadilho! Os dicionários dizem: “Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia”. E Domingos Vieira, citando as Ordenações: “Estradas e rua pruvicas antiguamente usadas e os rios navegantes se som cabedaes que correm continuamente e de todo o tempo pero que o uso assy das estradas e ruas pruvicas”.

A obscuridade da gramática e da lei! Os dicionários só são considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei in-folios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações.

Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!