sábado, 6 de setembro de 2008

(Praça da Matriz - Tapiratiba)
ALMA ENCANTADORA DAS RUAS

João do Rio


This is a sensible book. This is a book to improve your mind. I do not tell you all I know, because
I do not want to swamp you with knowledge...
(Este é um livro sensível. Este é um livro para melhorar nossa mente. Eu não vou contar a todos vocês o que eu sei, porque eu não desejo atolá-los com meu conhecimento...)

Jerome K. Jerome
A
João Ribeiro
Profunda admiração
JOÃO DO RIO


A RUA

Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se
não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é
partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades,
nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia,
mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia — o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.

A rua! Que é a rua? Um cançonetista de Montmartre fá-la dizer:

Je suís la rue, femme êternellement verte,
(Eu sou a rua, fêmea eternamente verde)
Je n’ai jamais trouvé d’autre carrière ouverte
(Eu jamais encontrei outra carreira aberta)
Sinon d’être la rue, et, de tout temps, depuis
(Senão de outra rua, e, todo o tempo, depois)
Que ce pénible monde est monde, je la suis...
(Que esse penoso mundo é mundo, eu sou-o...)

A verdade e o trocadilho! Os dicionários dizem: “Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia”. E Domingos Vieira, citando as Ordenações: “Estradas e rua pruvicas antiguamente usadas e os rios navegantes se som cabedaes que correm continuamente e de todo o tempo pero que o uso assy das estradas e ruas pruvicas”.

A obscuridade da gramática e da lei! Os dicionários só são considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei in-folios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações.

Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!

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