Semana Santa
Ela era apenas um objeto social da cultura. Era mulher, estatura baixa, corpo bem feito, rosto também. A expressão dos olhos de um castanho imenso que aturdia o cunhado que logo lhe perguntava se era santa ou safada.
Obstinada, ela respondia, que é isso João Batista, e você nem me conhece, com aquele sorriso que a Deus dera em comunhão e ao crisma na mais tenra idade.
Mas João, ordinariamente, insistia em suas mazelas que a irritava. Mudava o caso, discutia política do país, o problema da fome e das águas. Até mesmo a chuva daquele dia não a deixara em paz. Olhava o céu e gritava um lá-vem-chuva tão entusiasmada que Vanessa pedia um ovo branco para Santa Clara. O batuque ao fundo da casa anunciava os festejos da Páscoa. Por aqui tem reza, muita vela e procissão, para os mais incautos, samba, molejo, dança de matuto e feira de badulaques, artesanato e muita cerveja e cachaça que é para assustar os vizinhos cruzando um Credo da cabeça ao peito.
A chuva caia silente, o céu escurecido não tirava a animação da casa e dos festejos até que receberam uma visita já encomendada pelo internet um dia antes. Chegara o outro João, que não era o Batista, apenas João. Seus olhos cruzaram em alegria que a mulher inerte e diminuída percebera no minuto o que tudo acontecia. Mas isso era amor velho, de infância, adolescência recolhida pela torturas sociais da época.
Ele vivera um amor calado, mudo, por muitos anos. Até que lhe dissera um dia através dos modernismos que avô chamava de coisa do diabo. Joaquim Fernandes sempre disse que o rádio ia acabar com o mundo, que era a desgraça do povo, que até guerra trazia de longe!
Mas se não fosse assim, esse amor teria ficado guardado na lembrança, no desencontro, nos anos idos.
A mulher, condescendente, andava pela casa olhando as antiguidades, admirada de ver tanta beleza conservada através do carinho dos moradores. Pegava os santos, os oratórios, os candelabros, cheirava as barras de sabão que a prima de Lorena mistura em alquimia as flores e os aromas resinados que colhia nas manhãs de orvalho, antes do sol aparecer no alto da montanha que ficava ao fundo do casarão.
Os olhos perdidos entre tanta maravilha nas cores dos vitrais da casa chagava o coração da esposa dentro de um emaranhado de galhos secos de um velho Manacá florido.
A conversa do apenas João e Lorena ia longe, olhares complacentes, lascivos, marcavam um novo encontro para um junho próximo. Fumavam para disfarce, retiraram-se da casa.
Passados os dias da Semana Santa, chegado o domingo, todos partiram. Ela ficara ali com suas coisas, seu teclado, os dedos rápidos preparavam textos para as próximas aulas da semana. A última porta de carro bateu, um até mais, o último!
A tristeza buscou fundo o seu coração. E sozinha as primeiras lágrimas desceram. Procurou pelos amigos de plástico como ela sempre chamara suas amizades da internet. Nada! Nenhum, somente o Fábio andava perdido pela comunidade.
Sentou sozinha sobre a cama, chegou os joelhos até o peito, abaixou a cabeça e chorou o choro mais duro que já tivera. As lágrimas desciam secas pela garganta rasgando, queimando tudo por dentro. A sua vontade era ficar ali, parada, exatamente como um feto e quando suas lágrimas bastassem. Levantou, num gesto súbito, vestiu suas roupas de academia e saiu pela avenida, chorando rasgado suas lágrimas de solidão e dúvida.
Nem o filho viera desta vez, nem os outros sobrinhos que tanto ama, a outra rmã. Andava apressado para chegar na esquina do Bairro de que mais gostava na cidade. Era lá que esgotava suas dores em lágrimas e dizia que voltava renovada de suas tristezas mais profundas. Relutou tanto pelo caminho até chegar ao lugar para desaguar as últimas águas do verão que já havia ido há uma semana. Segurou tanto as lágrimas que ao chegar naquela esquina, riu tanto, tanto como se desdenhasse o companheiro na tentativa de um gozo que não acontecera. Olhou o céu mais uma vez, o sol acabava de declinar. Deu a volta pelo bairro e na volta,como sempre acontecia, já não tinha tanta vontade de chorar. Estava leve e solta. Pensou nos olhos de João, na blusa Polo verde do último encontro, no sempre a mesma cor e nos mesmos gestos tímidos do adolescente que ainda guarda dos anos que se foram.
Pensou no filho longe, na semana que viria cheia, veio andando pela avenida , fazendo o caminho de volta. Olhou algumas vitrines,mostrando seu lado mais fútil.
- Amanhã passo aqui para comprar esta sandália linda, disse calada, enxugando sua última lágrima.
4 de Abril de 2010.
(Mais um que vai lá pra Fortaleza!!!)
(Mais um que vai lá pra Fortaleza!!!)